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30 de jan. de 2017

CENTENÁRIO DE RAQUEL PEREIRA CARNEIRO



Minha mãe, Raquel, se estivesse viva, estaria fazendo 100 anos, hoje. Mas, permanecendo viva na memória e na história de Tanque Novo, por ter sido a primeira professora formada e nomeada pelo Estado, para aquele lugarejo pertencente ao município de Macaúbas, seu centenário de nascimento merece ser avultado. E para homenageá-la, dois ex-alunos e seus discípulos, dois educadores que se destacam há mais de quarenta anos em Belo Horizonte e Betim (Grande BH), Minas Gerais: Isnar Carneiro e Teotônio Marques Filho (Tunico). Isnar fez uma sinopse interessante, discorrendo sobre algumas personalidades, doidos, parteiras, religiosos, iguarias e costumes do lugar, naquele tempo vivido pela professora Raquel. E Tunico nos presenteia, mais uma vez, com outro poema maravilhoso: “Sem Anos”. Quando a história de alguém se funde com a história local, passa a ser atemporal. Raquel chegou a Tanque Novo em 1933, com 16 anos e faleceu em novembro de 2008, faltando dois meses para completar 92 anos. Foram 75 anos de convivência com aquele povo. Apesar de ter sofrido muita discriminação, ela soube tirar de letra. Vale ressaltar seu legado de educação, de fineza e de etiqueta. Em qualquer tempo e lugar, o bem sempre sobrepõe o mal.
(Aparecido Carneiro)

“Que grande é este amor meu de criatura, que vê envelhecer e não envelhece”!
(Vinícius de Moraes)


FAZ UM SÉCULO QUE RAQUEL NASCEU

(Por Isnar Marcil Carneiro, afilhado, discípulo e admirador desta eterna mestra).

30 de janeiro de 2017. Cem anos completaria, hoje, a minha primeira professora, Raquel Pereira Carneiro, falecida em 2008.
Há uma semana, estava dentro da Igreja de Tanque Novo, com os restos mortais da minha mãe Celina, transportados de Betim, Minas Gerais, para a mesma morada eterna, aqui nesta terra, do meu pai Moisés Marques da Silva, cujos ossos, também, foram transladados para lá. Ao dirigir a palavra para os atenciosos parentes, avistei, dentre outros, o patriarca, de quase cem anos, Juvêncio de Celsina, o Lu, primeiro neto de Moisés e Celina, sua mãe Neusa e seu pai Edgar, sua irmã, Nana, meu irmão Célio, e três dos filhos de Raquel: a Raquelinda, a Eloísa e o Aparecido. Neste momento, diversos filmes confusos, mais parecidos com slides misturados, foram passando pela minha mente numa rapidez semelhante à de um relâmpago:

·         Antõezim (Antônio Carneiro) junto com seu irmão Arquimimo, Manoel Ferreira, Prudenciano e outros cantando o “Senhor Deus”, de joelhos e com os rostos quase encostando no chão.
·         Meninos e meninas entrando e saindo da escola, na casa da professora, parecendo enxame de abelhas. Esses pequenos eram da primeira, segunda, terceira e quarta séries, tudo junto. Mais de cinquenta para uma professora só. Era uma casa de ensino que começou na década de 30 e quase ultrapassa o ano de dois mil. Essas criaturas tinham nome: Celina, Elena, José Carlos, ”Fulô”, Sineizim, João de João de Arlinda, Wilson de Hermínio, Isnar de Moisés e Celina, Pedro de Maurilio, Tunico de Teotônio, Terezinha e Beatriz de João de Lolô... Milhares.

·         Vi Arlindo, Doutor, esposo de Raquel desde 1943, atendendo em sua farmácia e comandando, com altivez, quase tudo.
·         Dona Alice de Ziquinha e Ana Preta indo e vindo, fazendo partos por toda a vila.
·         Uma professora forte, com personalidade e caráter ia plantando a semente do conhecimento e dos bons costumes para todos. Ela era única. Era mais forte ainda porque era humilde, desde que nasceu e assim continuou. Um aluno seu, o Tunico, um dos mais respeitados mestres da língua portuguesa, a chamou, com sinceridade e sabedoria, de “a pérola negra do sertão”.
·         E Deus Criador viu tudo isso e achou bom. Deu-lhe uma vida longa, quase cem anos. Nós, seus eternos alunos, já com cinquenta ou sessenta anos, íamos visitá-la e ela nos oferecia um café gostoso, bolos e doces saborosos e sempre perguntava: “como está comadre Celina”?

·         Os filmes misturavam ainda mais em minha mente, saia de um entrava no outro. Os personagens embolavam: Justiniano cantando, Zé Correto gritando, Manoel Ferreira orando, Firmo e Manezim pescando, Seu Pompílio capinando, Zé Vidoca invocando, Zé Leão sapateando, Moises Marques discursando, Vavá consertando, João Basilio tocando, Messias adivinhando, Padre Zé Maria celebrando, os “filhos” e “filhas” de Alice e Ana Preta chorando ... E RAQUEL, gentilmente, ensinando.

·         Vi o Riacho da Rapadura negando passagem; vi a Vereda ajudando o açude com um riachão manso transbordando; vi os ventos do norte soprando e empurrando nuvens negras cheias d’água para juntinho de nós; vi cabras parindo na lua cheia; vi tia Arlinda fazendo cuscuz; vi milharais fantasiados com uns enfeites brancos na cabeça; senti até o cheiro gostoso da lama onde eu afundava pra pegar peixes no mês de agosto. Vi, também, as arapucas com as codornas pulando. Vi minha vaca craúna desfilando e cagando na rua, com uma bezerrinha atrás, sem se preocupar com a plateia...

·         Vi, ainda, Ozório mexendo farinha; Teotônio juntando dinheiro; Lídia raspando mandioca com um trinchete; Jove fazendo café na esculateira; Nelson passando com o caminhão cheio de porcos magros; Lolô talhando as umburanas para fazer o altar.

·         Vi umbuzeiros fazendo lama; vi Hermínio gritando o leilão, lotado de brevidades, avoadores, chimangos e garrafas de mel de jataí e mandaçaia. Do Tamboril, a gente escutava a voz do filho de Arquimimo e o preço de cada coisa. Vi caboduros e sudegas esperneando pelos seus candidatos.

·         E a minha mãe Celina, que tanto me amou, dizendo: “O que fui, você é e o que sou, você será.
·          As mães colocavam o feijão na panela, enquanto Raquel, afetuosamente, ministrava para os meninos trazidos ao mundo pelas parteiras Alice, Ana Preta,  Vitalina e tantas outras. Então, ela não foi mãe só de Maria, de Raquelinda, de Carneirinho, de Edilson, de Zélia, de Joaquim, de Cido ou de Eloisa. Ela foi mãe e mestra de todos nós.






Sem anos

No calendário dos homens,
as algemas do tempo, que limitam o pulsar da vida...
Cortar o tempo em anos, séculos, milênios...
Por que cortar o tempo,
se se pode viver uma vida inteira,
num segundo apenas?

Na memória do tempo,
uma figura singular (posto que plural...)
avulta nos anais da história:
a madrepérola de Tanque Novo,
Raquel Pereira Carneiro,
que faria hoje um século...

Ah, menina-flor,
quantos filhos deste à luz
no solo gentil desta terra de Tanque Novo ,
com teu amor sem medida!
Teu tempo, muito mais que eterno,
será sempre terno e tenro como feto,
concebido nas entranhas do afeto...).
Do solo de Tanque Novo,
és mãe gentil,
berço que a brisa beija e balança...


Um século, pois, é pouco
pra caber tua grandeza!
Um milênio não é nada
pra caber a gratidão dos filhos teus
desta pátria nossa atemporal...

(Para tia Raquel, madrepérola de Tanque Novo, em 30/01/2017)