
Rachel Pereira de Andrade nasceu na Fazenda Pintada, de José Antônio Tanajura, vizinha da Fazenda Cajueiro de Policarpo Ribeiro, no dia 30 de janeiro de 1917, depois mudou-se para a Fazenda Vazante, de seu tio Ciro Pereira de Andrade, perto da vila Gentio, hoje Ceraíma, município de Guanambi-Bahia. Era filha de Renato Pereira de Andrade e Leonor Fagundes Cotrim. Seus avós paternos foram: Manoel Andrade (Rio Branco de Bom Jesus da Lapa) e Raquel Pereira (Guanambi); e seus avós maternos: Manoel Fagundes Cotrim (Caetité) e Serafina Pinheiro de Canguçu (Brumado).
Teve três irmãos: Maria da Conceição Pereira, João Pereira Sobrinho e Geraldo Pereira de Andrade.
Aos quatro anos de idade foi adotada pela sua tia Silvéria Maria de Jesus Fagundes, que era viúva, passando a morar em Caetité.
Na adolescência, conseguiu ingressar na Escola
Normal de Caetité, uma das melhores escolas da Bahia, naquela
época. E aí, surge a indagação: como Raquel, pobre e negra conseguira estudar
naquela renomada instituição de ensino?
Fazendo uma análise, realmente, negros e pobres enfrentavam
grandes dificuldades de acesso à antiga Escola Normal e ao sistema educacional
como um todo no Brasil, especialmente durante o período imperial e os primeiros
anos da República. O acesso à educação era desigual, com a parcela mais rica da
população tendo mais oportunidades, enquanto negros e pessoas pobres
enfrentavam barreiras como preconceito, leis discriminatórias e falta de
recursos. Exceções, apenas, para aqueles ou aquelas mais inteligentes.
Sua
tia Silvéria realizava vários trabalhos domésticos: lavava e passava roupa,
bordava, costurava, torrava café, fazia crivos, rendas, bolos e doces. Além
disso, era parteira e babá. Prestava esses serviços nas casas daqueles mais
abastados, recebendo sempre, uma gratificação financeira. E foi o Sr. Durval
Públio de Castro, político local, quem percebeu a inteligência de Raquel, que sempre acompanhava
sua tia, naqueles afazeres. Ele disse: “Essa menina é muito ativa. Ela precisa
estudar na Escola Normal”. E assim, aconteceu. No início, era sua madrinha
Maria Moreira da Silveira quem pagava tudo na escola, inclusive, a matrícula.
Depois, sua madrinha foi alertada pelo Sr. Batista Neves, sobre a existência de
uma associação denominada Caixa Escolar, que recebia verba pública para
auxiliar na manutenção e conservação da escola, além de apoiar os alunos de
parcos recursos. A partir daí, Raquel recebera ajuda dessa entidade. Porém, o
valor não era suficiente para aquisição de livros. Os alunos que não tinham condições de comprar livros, iam
estudar nas casas dos colegas ou na biblioteca da Escola. Esta segunda escolha
acabava ficando mais complicada, pois nem sempre havia livros suficientes para
todos os alunos. Contudo, a melhor solução para os mais carentes era tomar
apontamentos. Raquel costumava fazer isso. Mas, também contava com o coleguismo
de Agnalda Públio de Castro, filha do Sr. Durval, que não negava o empréstimo
de livros e sempre a convidava para ir estudar em sua casa.
É importante
ressaltar, que Raquel sofrera discriminação racial na Escola Normal. Ela pensou
em abandonar os estudos, mas foi aconselhada pela professora Celina Rodrigues
Lima a desistir daquela ideia. Essa professora era a secretária da Caixa
Escolar. Além dela, mais duas professoras compunham a equipe: Dulce da Silva
Araújo como tesoureira e Beatriz Rodrigues Lima Hoffmann (diretora da escola)
como presidente da associação.
Nessa fase estudantil, Raquel teve uma vida
religiosa muito participativa: integrou o coral da igreja matriz de Caetité e
atuou em dois grupos da religião católica: Apostolado do Coração de Jesus e o
segundo, Filhas de Maria.
Um ano
antes de se formar, nas férias de 1931, teve um estágio remunerado na
comunidade de Juazeiro, município de Caetité, durante dois meses, ficando
hospedada na residência do Senhor Antônio Tintino e Dona Teresa.
Formou-se no dia sete de dezembro de 1932, com
16 anos incompletos. Não participou das solenidades da formatura, porque não
tinha condições financeiras. Mas, foi escolhida pelos seus colegas, para que
fizesse o discurso de despedida da Escola Normal. (A família guarda com carinho
e zelo, o rascunho desse discurso).
Pouco
tempo depois, foi nomeada pelo Estado, para trabalhar em Tanque Novo, um
povoado que contava apenas 22 casas e uma capela.
Viajou em companhia de sua tia Silvéria e de
dois guarda-fios de Caetité: Sr. Estêvão Lopes e Sr. Heteriano, conhecido como
Neném Coqueiro. A viagem foi a cavalo e aconteceu no dia 22 de maio de 1933.
Chegando a Tanque Novo, teve uma bela recepção pelo Sr. Antônio Alves Carneiro
(tio Tõe) e outras famílias, ficando hospedada, nos primeiros dias, na casa do
Sr. Teotônio Marques da Silva. Foi bem tratada, inclusive, pelo professor leigo
(leigo no bom sentido, porque não tinha formatura), o Sr. José Marques Carneiro
(tio Cazuza) que por sinal era capacitado e muito inteligente.
A primeira sala de aula foi cedida pelo Sr.
Laudelino José da Silva (Dãozinho), conhecida como República dos Viajantes.
Logo de início, matriculou 30 alunos, na faixa
etária de 7 a 16 anos. Devido à sua pouca idade, na hora do recreio tinha
disposição para brincar com os meninos e com as meninas. Mas, quando
necessário, sabia agir com rigor, punindo e até colocando de castigo aqueles mais
rebeldes, demonstrando maturidade e coragem.
Com o passar do tempo, acumulava na mesma sala
de aula, alunos do 1º ao 5º ano primário. Era uma classe multisseriada. Além
das matérias básicas: Gramática, Aritmética, História, Geografia e Ciências,
ensinava também, artesanato e bordado.
Havia, nessa ocasião, visitas periódicas de
inspetores escolares, que chegavam de repente, sem qualquer aviso prévio, para
avaliação do ensino. Só que a professora não se preocupava, pois contava com
excelentes alunos, aptos para responderem a quaisquer perguntas.
Raquel Pereira costumava passar férias ou
feriados no povoado de Bonito (atual Igaporã), onde
residiam vários parentes. Numa dessas viagens, mais precisamente no dia 7 de
setembro de 1935, solicitou a seus primos Messias e Maria, um dos seus filhos
para ir morar com ela e sua tia Silvéria. Justiniano Pereira de Sousa, que
tinha apenas quatro anos de idade, foi quem se dispôs a ir morar com elas. No
início, chamava sua prima de “Tia Quezinha”. Depois passou a chamá-la de
Dindinha.
Justiniano foi criado e educado com muito amor
e carinho pela professora Raquel e sua tia Silvéria.
Alguns anos depois, em 1943, essa professora
se casou com ARLINDO ALVES CARNEIRO e o seu nome passou a ser RAQUEL PEREIRA
CARNEIRO. Entretanto, mais uma vez, teve que aturar o racismo. Alguns
familiares de Arlindo não aceitavam aquele casamento. Porém, tudo foi contornado
e aqueles que eram contra o matrimônio, mais tarde se tornaram amigos.
Arlindo Alves Carneiro nasceu em 31 de julho de
1915, e era filho de Joaquim Alves Carneiro (Coronel) e Maria Francisca de
Jesus Carneiro (Dona). Seus avós paternos eram: Juvêncio Alves Carneiro e
Arlinda Gomes; e seus avós maternos, Prudenciano Alves Carneiro e Gertrudes
Francisca de Jesus Marques. É bom destacar que seu avô paterno era irmão do seu
avô materno. Juvêncio Alves Carneiro e Prudenciano Alves Carneiro foram os
verdadeiros fundadores de Tanque Novo. Foram eles que compraram a fazenda
“Furados”, sendo povoada e transformada em vila, pertencente a Macaúbas, depois
distrito de Botuporã e, emancipada politicamente em 1985, permanecendo com o
nome de Tanque Novo. Seu avô materno (Prudenciano) foi quem construiu a
primeira capela, tendo como ajudante sua esposa Gertrudes. Esse casal, também,
doou o terreno para a construção da primeira praça; conhecida, hoje, como Praça
da Matriz.
Seu esposo Arlindo era agricultor e
comerciante (farmacêutico prático), mas, sempre arrumava algum tempo para lhe
dar uma “mãozinha” na escola, tomando a lição dos alunos de 1º ano. Essa
tarefa, às vezes, era delegada aos alunos mais adiantados.
Desse casamento nasceram oito filhos, estando
seis vivos: Maria, Raquelinda, Arlindo, Edílson, Aparecido e Eloísa. Dois
faleceram com poucos meses de vida: Zélia e Joaquim. Arlindo e Raquel conviveram por mais de
cinquenta anos, com direito à comemoração das bodas de ouro, em 1993. Ela ficou
viúva em 1995.
Além de ter sido professora, Raquel ministrava
catecismo, ensinava hinos religiosos à mocidade, e como membro atuante do
Apostolado do Sagrado Coração de Jesus, acabou sendo secretária do mesmo, cujo
presidente era o Sr. Arquimimo Alves Carneiro. Incentivava os festejos da
padroeira Coração de Maria, fazia flores artificiais, bordados e arranjos para
andores e arrumava as crianças como anjinhos para as procissões. Além disso,
apresentava peças teatrais (uma delas, a Cavalhada Mourama, cujo resumo foi extraído
de um livro, em parceria com o Sr. Moisés Marques). Orientava, também, suas
alunas, na coroação de Nossa Senhora. Foi ela, inclusive, quem trouxe o
primeiro cântico para a coroação da imagem da padroeira, conseguindo a cópia do
mesmo com suas primas de Bonito (Igaporã). Contribuía, assiduamente, com o
leilão da primeira noite de novena, em louvor ao Coração de Maria.
Sabia também, costurar roupas, bordar enxovais de noivas, tocar bandolim e realizar outros trabalhos domésticos.
Ë importante citar seu empreendedorismo: na
culinária, ensinou fazer vários tipos de bolos, pães caseiros, doces, cocadas e
pirulitos de mel (antes, eram só pirulitos de açúcar). Na arte, deu dicas de
costura, bordados, arranjos, enfeites, flores de papel crepom e de tecido.
Atuou ativamente, em prol dos primeiros progressos de Tanque Novo, como a
criação do Posto de Correios e da feira livre, reivindicações suas, contando
com a participação de outras pessoas, inclusive de seu marido Arlindo. Foi ele,
inclusive, quem escolheu o dia da semana para a realização da feira:
terça-feira, que vigora até hoje. Viu surgir, também, a primeira banda
filarmônica, criada pelo seu sobrinho e ex-aluno, Osvaldo Marques da Silva
(Vavá Marques), juntamente com outros sócios.
Foram 32 anos cansativos de magistério, porém,
com saldo bastante positivo; através de sua formação básica, muitos puderam
continuar seus estudos, tornando-se professores e doutores ou funcionários
públicos concursados. Nota-se, entretanto, que alguns não puderam prosseguir
estudando, mas, sobressaíram como comerciantes ou políticos, tendo apenas o
curso primário realizado com a professora Raquel.
Raquel Pereira era calma,
serena, educada, gentil e conselheira. Tinha noções de psicologia. E possuía
algum grau de mediunidade, também. Através de seus sonhos, acertou várias
premonições. E por meio de suas preces e orações, localizou muitos objetos perdidos
de terceiros.
Pelo seu vasto conhecimento nas matérias que
lecionava, pela sua teoria musical (sabia ler partitura); pelo seu entendimento
básico dos idiomas francês e latim; pelos seus palpites positivos na política e
na religião (quando chegou a Tanque Novo, percebeu que só os homens rezavam e
cantavam nas celebrações religiosas. As mulheres ficavam caladas, no fundo da
igreja. Ela pediu ao padre que houvesse, também, a participação feminina. E sua
sugestão foi acatada). Pelo seu empreendedorismo, pelo seu anseio e engajamento
por melhorias no vilarejo, pelo seu incentivo à arte, cultura e tradição,
podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que era uma pessoa intelectual.
Ela sempre foi grata aos professores e algumas pessoas de
Caetité, que colaboraram com sua educação e instrução. Citava sempre os nomes
de D. Manoel Raimundo de Melo (1º bispo de Caetité), Monsenhor Luís Bastos e
Dr. Edgar Pitangueira; os professores Alfredo José da Silva, Antônio Meireles,
Carmem Spínola Teixeira, Maria Constância Paranhos Cardoso, Dulce Silva Araújo,
Aloísio Short, Beatriz Rodrigues Lima, Maria Lobão Neves, Maria Celina
Rodrigues Lima, Helena Lima Santos e Belanisa Lima.
Outras pessoas influentes:
Durval Públio de Castro e dona Lia; Estevão
Lopes;
Heteriano Pereira de Castro (Neném Coqueiro) e
dona Maria Edna (Dina);
Maria Moreira da Silveira (sua madrinha);
Bernardo e dona Emma;
Júlia e sua filha Alzira Viana;
Antônia (Tonica), esposa do Sr. Otávio;
Maria Amélia, esposa do Sr. Virgilino;
Semíramis Azevedo, esposa do Sr. Manoel
Fagundes Azevedo, e sua filha Adélia;
Letícia, esposa do Sr. Cazuza;
José Elísio (mestre de música) marido de dona
Ciu;
Senhor Otto Koehne e dona Alice;
Senhor César Augusto de Castro e Ianie
Silveira; Sr. Francisco Batista Neves e a esposa dona Suzana, pais do Prof.
Ieron.
Quando o magistério é exercido com amor e dedicação, o
professor ou professora acaba guiando, formando e edificando a inteligência dos
indivíduos, sendo um pilar para a nação. Em reconhecimento ao seu esforço,
dedicação, carinho e sacrifício, várias homenagens foram prestadas a ela, em
vida: nome de prédio escolar, nome de rua, poesias e até uma valsa dedicada
pelo seu saudoso afilhado e ex-aluno, Lindouro Marques. Em 2003, os professores
de Tanque Novo lhe renderam graças, através de uma missa solene, presidida pelo
padre Edson, com direito à placa comemorativa, pela passagem dos setenta anos
de magistério, contando com a presença de alguns alunos da primeira matrícula.
E, no ano de 2005, no Dia do Professor, foi exibido um DVD sobre sua vida,
produzido pela Secretaria Municipal de Educação de Tanque Novo.
A professora Raquel Pereira Carneiro faleceu
no dia 24 de novembro de 2008, deixando uma grande lição de vida: humildade e
amor ao próximo. Além disso, seu legado é muito rico em educação e cultura.
A maior recompensa do Magistério não é o que
pagam por ele; mas aquilo em que ele transforma as pessoas.


Um comentário:
Muito boa a homenagem - e mais do que merecida. Parabéns aos autores, e gostaria também de agradecer a menção aos meus avós - Otto e Alice. Peço, apenas, um pequeno ajuste na grafia do nosso sobrenome, para Koehne - que é como assinamos.
É muito bom vermos o reconhecimento às antigas mestras, em especial assegurando o registro histórico de seu trabalho para tornar o mundo um lugar menos hostil e, porque não dizer, ignorante - porque pessoas como a professora Rachel acendeu um facho de luz no caminho de muitos, iluminando mentes, libertando das trevas.
Novamente, meus parabéns.
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